terça-feira, 25 de outubro de 2011

SOBRE TEOLOGIA E A ARTE DE DAR NOME ÀS COISAS


por Jonathan MenezesSeg, 22 de Novembro de 2010 10:21 

O ser humano moderno foi acusado pelos seus opositores, os pós-modernos, de naturalizar o conhecimento, isto é, de tentar dar ao conhecimento o caráter de algo que sempre aí esteve, à disposição, para ser descoberto por meio do estudo dos objetos. O conhecimento, nesse sentido, seria algo dado, um produto pronto, prévio e independente da ação e intervenção humanas, cuja parte seria apenas a de apreensão e representação ou re-apresentação desse conhecimento. Os conceitos nasceram para dar conta do mundo, para ser uma designação fiel das coisas às quais eles remetem. Se digo, por exemplo, “Deus”, o dizer em si já remete à entidade a qual desejo designar. Parte-se do pressuposto da correspondência entre a palavra e a coisa em si.
Não foram só os pós-modernos que denunciaram a ilusão dessas pretensões modernas. Vozes solitárias no século XIX como a de Nietzsche, contribuíram para o questionamento das bases dessa quimera. Em um texto seminal, de 1873, intitulado “Verdade e mentira no sentido extramoral”, esse filósofo lança mão de aporias do tipo: por que razão o mundo se mostraria como ele é? Seria a linguagem um simples espelho da realidade? Assim, a partir de uma fábula possível, ele propõe a tese de que o conhecimento humano é relativo e que, portanto, é arrogante e ilusória a pretensão dos filósofos – teólogos, no caso aqui proposto – de querer “dar conta” da realidade a qual se referem.

Nietzsche parte da tese de que o conhecimento foi inventado. Isso na primeira frase do texto: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que os animas inteligentes inventaram o conhecimento”.[1] Na percepção de Michel Foucault[2], quando Nietzsche usa a palavra “invenção” tem sempre em mente uma palavra que se opõe à “invenção” – e que, diga-se de passagem, foi por muito tempo cara aos teólogos – que é a palavra “origem”. Quando ele fala que o conhecimento foi inventado, significa, portanto, que o conhecimento não tem uma origem, isto é, não existia antes de ser inventado, não é “dado” pelo universo.

Foucault usa um exemplo da análise desse filósofo, que é o da religião. Nietzsche critica seu mestre, Schopenhauer, que em sua visão cometeu o erro de buscar a “origem” da religião em um sentimento metafísico – como também fizera Friedrich Schleiermacher, para quem “religião é sentimento” – “que estaria presente em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial”. O protesto de Nietzsche, nas palavras de Foucault, é que essa é uma análise da história da religião “totalmente falsa, pois admitir que a religião tenha origem em um sentimento metafísico significa, pura e simplesmente, que a religião já estava dada, ao menos em estado implícito, envolta nesse sentimento metafísico”.[3] Em outras palavras, as religiões, assim como a cultura e a história, não são dadas, são fabricadas. Parafraseando Nietzsche, são fabricações da linguagem.

Com isso, parte-se de dois princípios: 1) somos irremediavelmente ligados à atividade de nomear; 2) “nomear é dar forma ao mundo”, pelo menos à parcela do mundo cabível à nossa compreensão e explicitada pela linguagem. Nomear não é nem representar, nem dar conta do mundo. Nomear é criar. Logo, o conhecimento – não um dado, mas uma produção – é apenas uma visão parcial do objeto conhecido. A linguagem conceitual não é uma tradução, mas uma invenção. Não há afinidade entre o conhecimento e seu objeto. Dizer “isso é fé”, não significa dar conta da coisa em si, fé. Mas essa é uma condição indissociável do conceito, que segundo Nietzsche nasce por “igualação do não igual”. Assim, todo conhecimento é uma violação de seu objeto...


Encerrei a primeira reflexão dessa série falando sobre nossa irremediável condicionalidade à linguagem e à arte (no sentido de criação e invenção aplicado por Nietzsche) de nomear as coisas. É preciso retornar a isto para dar contorno à segunda linha de argumentação que aqui desejo propor, que na verdade se expressa em continuidade com a anterior. Na primeira parte de A gaia ciência Nietzsche faz uma menção mais direta desse problema da linguagem quando afirma que para nós mais importa saber como se chamam as coisas do que o que elas são. Penso que exatamente por não sabermos o que as coisas são em sua essência é que nos aferramos na atividade de nomear, de dizer “isto é assim”, “aquilo é assado”. Mas, pergunto: quem está livre de tal condicionalidade? Com isso, Nietzsche denuncia o abismo existente entre nós e o mundo tido como essencial. Nossa relação com ele não é mediada pela correspondência, e sim pela criação: “Só os criadores podem destruir! Mas não esqueçamos isto: basta criar novos nomes, apreciações, novas verossimilhanças para criar, com o tempo, novas coisas”.

Parto, porém, do pressuposto de que vivemos (nós, teólogos, mais intensamente) pautados pela negação de que somos criadores, pois tal negação nos permitiria sobreviver na ilusão “necessária” de que aquilo que produzimos discursivamente, os significados que damos ao mundo, correspondem à verdade. Essa é, aliás, a ilusão do fundamentalismo. Tal ilusão é nosso escudo de proteção contra a conflitividade gerada pela consciência de que não lançamos mão de verdades e sim de interpretações, o que automaticamente desautorizaria, nosso discurso perante um rebanho, uma coletividade. É preciso, portanto, manter os signos e os códigos combinados, a fim de que continuemos não só protegidos pela “nossa verdade”, mas pela crença coletiva na identidade. E só permanecemos nessa crença, diz Nietzsche, graças à nossa capacidade de esquecer. Como analisa Viviane Mosé, “sem esquecer a pluralidade sensível que gerou a palavra, o homem não teria chegado a concluir que a identidade forjada pelas palavras pudesse corresponder efetivamente às coisas”.[4]

Em uma palestra ministrada semana passada na Universidade Estadual de Londrina, Mosé afirmou que a palavra não passa de uma “moldura vazia”; e, à medida que é lançada, cada um faz o que quer com ela, isto é, preenche-se tal moldura como se acha mais conveniente ou apropriado para aquele momento. Se estendermos tal metáfora à comunicação, perceberemos que a comunicação, que desejamos ser uma possibilidade (de entendimento e correspondência de pensamento entre duas ou mais pessoas), é, na realidade, cheia de fissuras e impossibilidades. Como já diriam os estudiosos em comunicação, mas sem muito aprofundamento, a comunicação, ou mais precisamente a “fala”, é cheia de “ruídos”. O problema surge quando, ou como quase sempre acontece, nos esquecemos de que tendemos a reter muito mais os ruídos do que propriamente a intenção original de um sujeito no ato de dizer ou significar algo. Assim, nossas significações das coisas (atos de fala) são produtos criativos de outras significações. Tudo passa, até nós mesmos, pelo filtro da linguagem.

Por fim, vale ressaltar outra questão que me chama atenção na fala de Viviane Mosé, ao apontar para nossa interpretação do mundo, que segundo ela é baseada na fragmentação, numa racionalidade que origina um pensamento pautado por julgamentos, divisões, descrições, mas que, em virtude da ilusão em torno da qual gravitam, pretendem atingir a totalidade. Ao pretender atingi-la irremediavelmente se exclui a pluralidade de possibilidades que envolvem a compreensão de uma coisa. Ao excluir a pluralidade, exclui-se a diferença. Nossa visão míope, mas pretensamente totalitária, nos conduz à exclusão, ao afastamento da diferença. Isso me dá pelo menos uma pista importante para entender as razões que nos mantêm no campo da intolerância (de múltiplas naturezas) num mundo cada vez mais plural; ela está no princípio de nossa forma de conhecer, de nossa aversão às diferenças, de nosso fundamentalismo oculto ou sofisticado.


De que maneira relaciono essa reflexão sobre “dar nome às coisas” à teologia? Para finalizar essa série e responder a tal questão quero aqui me valer da discussão feita por Jacques Ellul em seu livro A palavra humilhada. Certa vez, ouvi de um professor o seguinte: “Para tudo o que é, a linguagem cala”. E logo me lembrei da passagem bíblica em que Moisés pede uma alcunha para Deus, como se dissesse: “Esse povo aí irá me perguntar a Quem estou dizendo para eles seguirem; embora eu tenha dito que é ‘o Deus de vossos pais’, eles vão querer um nome; então que nome eu dou pra você, quem é você afinal?”. E a resposta do Senhor foi emblemática: “EU SOU O QUE SOU”. E para tudo que é... Se a discussão é sobre se ele é verdadeiro ou não, a resposta é: “EU SOU”. Pronto. Contente-se com isso, Moisés, com a impossibilidade de expressar a verdade por meio da sua linguagem. Como diz Ellul, “se a verdade é a verdade acima de nossas apreensões e estimativas, ela é. Ponto final. Permanece, forçosamente, ela mesma”. Logo, completa ele, “a verdade nada mais é do que o absoluto ou o eterno, e de cujas margens não somos sequer capazes de nos aproximar”.[5]

Certo então, a linguagem se cala diante da verdade, pois dizer a verdade compreensivamente (em tudo o que ela é) seria o mesmo que matar a própria verdade. Entretanto, como até aqui temos visto, o ser humano se serve o tempo todo desse meio improvável chamado de linguagem, de modo que se poderia indagar: “Ora, se somos irremediavelmente ligados a essa atividade de nomear, como posso me calar diante de tudo aquilo que vejo”? Eis a questão, difícil aporia, nós somos “incaláveis”, se me permitem o neologismo. De tal modo que a relação e ansiosa busca pela verdade estão intimamente associadas com a fala. A verdade (ou, a verdade para mim) é... Assim, a verdade torna-se sinônimo do verbo, idêntica à palavra, efêmera e fugaz, ao que é dito, “igualação do não igual”. Trata-se, como diria Ellul, de nosso instrumento mais lábil, incerto, referindo-se ao que é mais certo. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Mas como saberemos o caminho? O que é a verdade? Que vida é essa? Continuamos tentando descodificar a verdade na linguagem.

Nossa referência ao real está sempre em busca de correto e incorreto. Fazer teologia, até aqui, tem sido julgamento do correto pelo incorreto. Embora a verdade que desejamos tanto deter, nos escapa, porque somos detidos por ela e não o contrário, ainda assim insistimos em nos mover num universo de exatidão, em busca da única resposta, a solução correta, o paradigma exato. Quando, na natureza do paradigma em si mesmo, mora a imprecisão. Como diz Ellul: “Não existe experiência imediata da verdade, nem da mentira, nem do erro. (...) O que vem da palavra nunca é evidente. O real pode ser evidente, a verdade, nunca”.[6] Um leitor um pouco mais impaciente que o resto, poderia perguntar: “Mas então porque devo continuar nisso se já descobri que a verdade não pode ser descoberta”?

É simples, e é complexo: porque é ela que confere sentido ao nosso existir. A impossibilidade da linguagem deveria, assim, nos conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que somos e temos, e da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário, diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela, pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim deuses, ou semideuses. Parafraseando Ellul, nossas certezas teológicas podem ser falsas quanto à exatidão da revelação (quando assim pretendemos), mas são elas que nos permitem viver. O maior milagre e a maior benção da teologia, bem como da vida humana, é também sua maior limitação: não em expressar a verdade (quanto mais a divina) por vias exatas, mas em encontrar fragmentos dessa verdade na inexatidão da linguagem. “Assim se situa esta vida maravilhosamente humana. O sentido mais garantido dirigindo-se ao mundo mais incerto. O sentido mais frágil, exprimindo o indiscutível”.[7]

[1] NIETZSCHE, Friedrich W. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53.

[2] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Naw, 2002, p. 14.

[3] Ibid., p. 15.

[4] MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 73.

[5] ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 35.

[6] Ibidem.

[7] Ibid., p. 43.

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